A notícia começou a se espalhar cedo no cruzamento da rua Monte Alegre com a Áurea, um dos "baixos" boêmios de Santa Teresa, onde Ronald Biggs ia regularmente para tomar uma cerveja no Bar do Gomez ou na mercearia ao lado.
Durante mais de 15 anos, Biggs morou pertinho dali, subindo a ladeira de paralelepípedos da Monte Alegre. Ricardo Esteves, sócio da mercearia, diz que ele era "um grande amigo, um grande cliente, um grande freguês".
"Ele recebia muita visita de fora e sempre trazia o pessoal aqui para beber. E dava muita festa em casa, então sempre comprava tudo aqui", diz.
Foi da mercearia, lembra Ricardo, que Biggs encomendou 30 engradados de cerveja para abastecer a festa que deu para comemorar os 30 anos do assalto ao trem pagador --que ocorreu em 8 de agosto de 1963, lançando-no para a história do crime mundial.
"Foi uma baita festa. Ele vai fazer muita falta. Ninguém recriminava ele aqui não. Ele só dava mais alegria ao bairro", diz.
A casa onde Biggs morava foi por um bom tempo uma espécie de ponto turístico alternativo em Santa Teresa, com visitas tanto de pessoas ilustres quanto de turistas comuns que chegavam ávidos para conhecer o ladrão que virou ícone do crime mundial e celebridade carioca.
Água também roubada
O casarão antigo em estilo belle époque é dividido em três apartamentos. Biggs morou com o filho no nível mais baixo, com uma vista privilegiada para o centro do Rio e uma piscina que, de acordo com os vizinhos, era esvaziada e enchida duas vezes por semana com um gato para roubar água da rua --porque Biggs não gostava de cloro.
Nesta quarta-feira (18), o endereço virou ponto disputado pela imprensa, com repórteres de diversos veículos tocando as campainhas na vizinhança atrás de histórias sobre a vida carioca do célebre fugitivo inglês. Um cinegrafista lembrou que já estivera ali antes para entrevistar Biggs. "Mas ele só dava entrevista se a imprensa pagasse", disse.
O fotógrafo Renan Cepeda mora no apartamento logo acima no mesmo prédio e conviveu com Biggs e seu filho Mike durante 11 anos, até ele decidir voltar para a Inglaterra. Ele conta que pai e filho compraram o apartamento em 1984 --Mike era uma criança, mas o dinheiro que ganhou como integrante da banda Balão Mágico foi decisivo para a compra.
Cepeda testemunhou de perto a fama de festeiro de Biggs, com as festas e churrascos em volta da piscina. Mas o agito era também o seu ganha-pão. Biggs escapou da extradição graças ao filho brasileiro, mas não podia trabalhar no Brasil. Então o jeito foi se sustentar com a própria fama.
"Ele cobrava para dar entrevistas, cobrava para as pessoas tirarem foto com ele, montou uma infraestrutura onde podia dar festas e receber turistas. Quase toda semana tinha gente visitando, parava uma van ou um ônibus na porta. Ele virou uma atração turística", lembra Cepeda.
'Esconderijo perfeito'
Mas o fotógrafo diz que na maior parte do tempo Biggs era simplesmente o seu "vizinho inglês", que além de festas gostava de plantas e de marcenaria, e que até se esquecia que se tratava do famoso Ronnie Biggs --até que alguma virada no caso trouxesse hordas de repórteres para a porta do prédio.
No geral, porém, Santa Teresa era um refúgio. "Acho que ele se sentia muito bem aqui. A rua é pouco movimentada e ele gostava de ter a sua privacidade e sossego. Era o seu esconderijo perfeito", diz.
O esconderijo só não era melhor porque os moradores do bairro sabiam muito bem onde ele morava. O taxista Júlio César Perillo lembra de já ter levado passageiros para até lá só para que pudessem ver sua casa.
Ele transportou Biggs diversas vezes, tanto no táxi quanto na Kombi lotada que dirigia mais cedo.
"Tinha até prazer de levar ele, pô, um cara famoso mundialmente", lembra. "Mas apesar de ser famoso ele era muito simples. O pessoal tratava ele normalmente, ele se misturava com as pessoas comuns."
Como a maioria das pessoas ouvidas pela BBC Brasil, Perillo não mostrou nenhuma reservas quanto ao passado criminoso de Biggs. O fascínio suplantou o julgamento.
"Acho que no Brasil não precisa vir ladrão de fora. A gente aqui pode até exportar ladrão. Dá para mandar para fora que ainda vai sobrar muita gente."
'Prisioneiro do Rio'
Ronald Biggs deixou o Brasil e Santa Teresa em 2001. Ele e o filho enfrentavam dificuldades financeiras. Biggs havia tido diversos derrames, não tinha mais condições de receber turistas em casa e estava gastando muito com medicamentos.
Foi quando, lembra Cepeda, ele recebeu uma oferta vultuosa do tabloide inglês "The Sun" para documentar com exclusividade o seu retorno ao país. Aceitou, mas lá chegando foi preso imediatamente.
"Acredito que ele tenha se entregado porque queria deixar uma herança para o filho. Mas eles contavam que ele poderia receber um indulto da rainha devido ao seu estado de saúde, e isso nunca aconteceu."
A vida extravagante levada no Brasil, posando para fotos com mulatas e com uma camiseta de "prisioneiro do Rio", certamente não ajudou a inspirar muita solidariedade nos ingleses.
"Ele tripudiou muito as instituições inglesas, cultivava essa imagem de 'olha como eu me dei bem', o que para muita gente soou como uma afronta", diz Cepeda.
Mas mesmo no fim da vida, e mesmo no cárcere, Biggs não perdeu o espírito irreverente e continuou aprontando.
Cepeda conta que quando Biggs estava na prisão de Belmarsh, com a saúde debilitada, os carcereiros decidiram manter as várias portas até a sua cela abertas para que ele pudesse ir ao banheiro de três em três horas durante a noite, já que só conseguia andar se arrastando e não conseguia chegar longe.
Até que uma noite ele saiu da cela e não voltou. Deixou um bilhete: "Cheers! - I'm back to Rio" (Algo como "Saudações! - Voltei para o Rio").
"Foi um alerta geral, Belmarsh foi sitiada, vieram helicópteros, batalhão de choque, todos atrás dele", conta Renan.
O velho Biggs estava escondido no armário do banheiro, morrendo de rir enquanto todo mundo o procurava.