SANTIAGO — Após mais um dia de protestos, que elevaram para ao menos sete o número de mortos em saques e incêndios, autoridades chilenas estenderam neste domingo o toque de recolher na capital, Santiago, além das cidades de Valparaíso e Concepción. O anúncio foi feito pelo general Javier Iturriaga, após uma reunião entre o presidente Sebastián Piñera; o líder do Senado, Jaime Quintana; da Câmara, Iván Flores; e da Corte Suprema, Haroldo Brito.
Nas ruas, mais de cem estabelecimentos comerciais foram saqueados e alguns incendiados e estações de metrô voltaram a ser depredadas, apesar do estado de emergência decretado na sexta-feira em cinco regiões. Segundo o Ministério Público, 1.462 pessoas foram detidas — 614 em Santiago e 848 no restante do país.
— A democracia não apenas tem o direito, mas também a obrigação de se defender usando todos os instrumentos que a própria democracia fornece e o Estado de Direito para combater aqueles que querem destruí-la — disse o presidente ao anunciar a medida.
No fim de semana, o centro de Santiago virou um cenário de destruição após os protestos iniciados na semana passada contra o aumento do preço da passagem do metrô. Lojas foram saqueadas e incendiadas, semáforos derrubados e milhares de destroços foram deixados nas ruas. Para analistas, no entanto, o aumento das tarifas foi apenas o estopim de uma série de reivindicações sociais.
— O que vimos nessas últimas horas vai muito além do aumento. Já vimos situações semelhantes em outros países, onde a partir de um evento específico, são gerados atos de violência — afirma Bettina Horst, subdiretora do centro de estudos Liberdade e Desenvolvimento. — Ninguém pode ignorar o progresso que o Chile registrou nos últimos 30 anos. Mas os últimos cinco foram piores em comparação aos anteriores. O mal-estar tem a ver com o que é vislumbrado para o futuro, mais do que com o passado.
Alto custo de vida
A economia cresce em torno de 2,5%, abaixo do prometido pelo governo, embora melhor do que muitos países da região. Na última década, no entanto, o custo de vida ficou mais caro, especialmente em Santiago, onde o preço da moradia aumentou em 150%, enquanto os salários subiram 25%, segundo um estudo da Universidade Católica. Além disso, 70% da população ganham menos de US$ 770 (R$ 3.170) por mês e 11 milhões dos 18 milhões de chilenos têm dívidas, de acordo com estimativas da Fundação Sol.
Os protestos começaram no início da semana passada, quando cerca de cem estudantes universitários resolveram protestar contra o aumento do preço do metrô, pulando a catraca sem pagar. Ao longo da semana, mais estudantes seguiram o exemplo, até que, na madrugada de sábado, quando várias estações haviam sido depredadas, Piñera decretou estado de emergência.
— Há um descontentamento, e foi essa a faísca que desencadeou tudo — diz o analista Roberto Méndez. — Também não ousaria dizer que uma mudança radical está chegando, mas devemos estar atentos. O que chama atenção até agora é que seja um movimento sem líderes ou rostos claros. Como foi espontâneo, emudeceu o mundo político.
Jornal queimado
Outros analistas culpam a “miopia do mundo político” para lidar com as demandas:
— Isso ajudou a aprofundar a crise até atingir esse nível. A isso, devemos acrescentar a falta de empatia, o sentimento de impunidade e abuso de poder — diz Gloria de la Fuente, diretora de Chile XXI.
O advogado e cientista político Carlos Huneeus, professor da Universidade do Chile, diz que a falta de sensibilidade do governo Piñera para tratar do assunto agravou ainda mais a violência dos protestos.
— O governo tem uma equipe dominada por empresários, com uma agenda que mantém as desigualdades e favorece as grandes empresas. Estão no gabinete de Piñera personalidades que trabalham com os principais grupos econômicos do país, que não têm sensibilidade para entender a desigualdade — afirma, lembrando que o próprio presidente faz parte da lista dos chilenos mais ricos, segundo a Forbes. — A fortuna de Piñera representa 0,98% do PIB chileno.
Apesar do toque de recolher e da mobilização de quase 10 mil militares, os distúrbios prosseguiram em Santiago e em cidades como Valparaíso e Concepción. Os saques se repetiram em vários pontos da capital. Às duas pessoas que morreram durante saque e incêndio em um supermercado da rede Walmart na zona sul de Santiago se somaram mais cinco vítimas em uma fábrica de roupas em Renca, zona metropolitana da capital, deixando um total de sete mortos.
Em Valparaíso, manifestantes quebraram a porta do prédio do jornal El Mercurio — o mais antigo do Chile, fundado em 1827 —, e queimaram parte das instalações por dentro.
Segundo o Ministério Público, 1.462 pessoas foram detidas — 614 em Santiago e 848 no restante do país.
— A educação falhou em incutir respeito irrestrito às regras básicas da civilidade entre todos os chilenos. A resposta fraca e acomodada de alguns políticos, incluindo os mais jovens, demonstra o atraso. A cultura da violência não foi erradicada — afirma o acadêmico Sergio Urzúa. — Obviamente, a situação é explorada por quem aposta no desmantelamento do modelo de progresso. Isto não é novo.
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