Mal entrou em vigor e o Marco Civil, a lei que protege direitos fundamentais na internet brasileira, já enfrenta uma prova de fogo. Trata-se da forma como o judiciário e as autoridades de investigação estão aplicando-o (ou não). A questão materializou-se de forma preocupante no inquérito policial que investigou os suspeitos de cometerem crimes relacionados às manifestações. Na busca por provas para motivar o indiciamento, a internet foi um dos principais instrumentos utilizados. As autoridades demandaram a quebra do "sigilo das comunicações (texto, imagens, arquivos, áudio, localização, etc.)" de 52 usuários de perfis do Facebook. Além disso, pediram "a criação de contas de espelhamento dos perfis" de modo que "os logins e senhas das contas-espelho" fossem "fornecidos à autoridade policial". O juiz consentiu e expediu ordem para que fossem cumpridos os pedidos. A questão é saber quais os limites legais aplicáveis, já que os requerimentos foram os mais amplos possíveis. saiba mais Marco Civil da Internet entra em vigor nesta segunda sem regras sobre temas polêmicos Sites têm até dia 23 para se adaptar ao Marco Civil da Internet Na contramão do Marco Civil, EUA ameaçam acabar com neutralidade Brasil sedia evento para discutir quem manda na internet Senado aprova Marco Civil da Internet Leia mais sobre Marco Civil da Internet O Marco Civil e a lei 9.296 (que regula a interceptação de comunicações) apontam em sentido diverso. A quebra de sigilo deve ser concedida apenas quando "a prova não puder ser feita por outros meios" e só quando houver "fundados indícios da ocorrência do ilícito". Além disso, o Marco Civil, seguindo a Constituição, assegura a "inviolabilidade da intimidade e da vida privada". Determina que "cabe ao juiz tomar as providências necessárias à preservação da intimidade e da vida privada do usuário". Em suma, conceder quebra de sigilo tão ampla e genérica viola a lei e a Constituição. O acesso a comunicações privadas pela internet só pode acontecer em casos excepcionais, onde haja fortes indícios de crime de maior potencial ofensivo. Mesmo assim, deve ser circunscrito ao objeto específico da investigação (a autoridade não pode usar outros ilícitos encontrados contra o investigado). Em decisão recente a Suprema Corte dos EUA definiu um princípio importante nesse sentido. Comparou atividades online à proteção da inviolabilidade do domicílio, afirmando que uma busca feita em um dispositivo conectado à rede expõe muito mais uma pessoa do que uma busca feita em sua residência. Faz sentido. O que impede que a internet se torne uma máquina de vigilância perfeita é a lei. Sem freios e contrapesos, direitos fundamentais como a privacidade e a liberdade de pensamento (que é o seu corolário), vão sendo minados. Quando o escândalo Snowden foi revelado, o Brasil emitiu reação forte em prol da privacidade. O país foi à ONU com a Alemanha e aprovou resolução que enfatiza a privacidade como direito humano. Essa posição precisa ser disseminada também na justiça. Sobre isso a presidente tem em mãos uma importante oportunidade. Na nomeação do próximo Ministro do Supremo, deveria considerar juristas comprometidos com os valores do Marco Civil da Internet. É uma forma de sinalizar para o país e para o judiciário a importância dos direitos civis na internet.