Publicada em 27 de Agosto de 2013 �s 15h00
Meu primeiro contato com Fernando Costa foi através de seus desenhos, numa exposição realizada na Biblioteca Des. Cromwell de Carvalho, em 1976. Naquela época, o Projeto Piauí estava a pleno vapor, com excelentes artistas importados de outros Estados para fazer escola por essas bandas: Reginaldo Carvalho, na música; Bob Robleds, na dança; Pierre Baiano, Murilo Eckard e Ari Sherlock, no teatro; Marcus Cremonese, nas artes gráficas, dentre outros. O Marcus Cremonese havia dado um curso de desenho a bico-de-pena e o Fernando Costa, então com 15 anos, destacou-se entre os demais alunos, merecendo uma exposição individual. Aqueles desenhos impressionaram-me à primeira vista. Saí da exposição decidido a ser desenhista e a usar o bico-de-pena como técnica artística, e com aquela força expressiva que os desenhos do Fernando já traziam.
Em 1982, eu já o conhecia pessoalmente. Eu, recém-casado, morava com a mulher e o filho Diogo Filipe, no bairro Primavera. Um dia, convidei o Fernando para ir à minha casa, pois eu ganhara de presente um litro de cachaça Mangueira, original, direto de Castelo do Piauí. Às oito da noite, em ponto, o Fernando já estava à porta de minha casa, com aquele sorriso quase infantil. Bebemos, conversamos e comemos piaba frita pescada no rio Poty sem poluição que, naquela época, dava até para tomar banho a bordo das câmaras de ar de pneu de trator ou de caminhão, com o auxílio luxuoso das coroas que apareciam ali, na altura do Porenquanto. Fernando e eu falávamos de muitos assuntos: arte, desenho, futebol, mulher e os prazeres da vida. O que me impressionava era a forma como ele sorvia, lentamente, as doses de Mangueira, e estalava a língua no céu da boca, depois que a cachaça descia pelo gogó. Falava baixinho, quase inaudível, e não tinha pressa em nada. A noite foi memorável e ficou-me na lembrança, o momento singelo, mas tão profundo de significados.
Quem conhece somente os desenhos e as pinturas de Fernando Costa, pode ser levado a crer que tratava-se de um artista angustiado, de gestos nervosos e falar compulsivo. Fernando era, no trato com as pessoas, a antítese das imagens que produzia. O espaço de sua obra era ocupado por figuras descarnadas, em gestos desesperados; ossos, músculos, vísceras, horror... tudo à mostra em duas dimensões, desprezando perspectivas e volumes, numa composição aparentemente caótica, mas de planejada ordem subjacente e meticuloso estudo de formas, cores e disposição espacial. Uma arte que ainda nos inquieta e nos remete a outras dimensões sem dar nenhuma pista, nenhuma resposta pronta. Pura arte, enfim, esperando ser decifrada individualmente.
Tempos depois, Fernando Costa foi morar em São Paulo, com a ajuda do Cineas Santos e o apoio logístico do escritor piauiense Clóvis Moura, que morava em Sampa há algum tempo. Não sei dizer quantos anos ele passou por lá. Só sei dizer que, quando voltou, estava mudado; sua arte também estava mudada. Abandonou o figurativismo e abraçou o abstrativismo, compondo suas obras em fragmentos de curvas, formas e cores pairando, leves, num arranjo espacial minimalista. O Fernando Costa, que falava manso, baixinho e sem pressa, agora era reticente e contemplativo. Quase silencioso, imaginando sabe-se lá o quê... E foi desse jeito que ele resolveu partir: sem alarde, silencioso, numa madrugada de carnaval.
Teresina, 27/08/2013