A palavra 'tratorar', usada no jargão político para designar atitudes autoritárias de pessoas detentoras do poder, tem se tornado um verbo recorrente no que se refere à atuação da presidente Dilma Rousseff - sobretudo na esfera econômica. Nas próximas semanas, um novo exemplo dessa prática poderá ser observado na forma como a Medida Provisória Nº 595, também conhecida como a MP dos Portos, será tratada pelo Senado. O site de VEJA conversou com diversas fontes próximas às negociações e ouviu que a mensagem do Planalto é de que a MP será aprovada "custe o que custar".
Ao longo do segundo semestre de 2012, a presidente mobilizou boa parte de seu tempo em Brasília para discutir detalhadamente os problemas do setor portuário com a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, o ministro da Secretaria de Portos, Leônidas Cristino, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, e, como não poderia deixar de ser, com o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, que está envolvido em todos os pacotes anunciados no ano passado.
A determinação da presidente em sancionar rapidamente a lei que prevê mudanças regulatórias no setor de portos e sua abertura para a iniciativa privada começou a ficar explícita nos últimos dias, quando o governo reiterou que, diferente do pacote de concessões de rodovias, nada mudaria na MP dos Portos. Logo depois, a vontade da presidente prevaleceu na escolha do relator da comissão mista criada para analisar MP: o líder do governo no Senado, Eduardo Braga (PMDB-AM). A comissão terá ainda como presidente o deputado e líder do PT na Câmara, José Guimarães (PT-CE), e como vice, o senador e líder do governo no Congresso, José Pimentel (PT-CE). A decisão, por tanto, ficará "entre amigos".
A insistência da presidente em aprovar a MP tem inúmeras causas. A medida é alvo de diversos ataques de grupos beneficiados pelo atual funcionamento portuário, como sindicatos de estivadores que trabalham praticamente como funcionários públicos no setor, tamanha a estabilidade empregatícia de que gozam, e grupos navais que lucram com a gestão pública esquizofrênica vigente. O modelo atual dá plenos poderes aos portos públicos para gerirem, inclusive, as tarifas cobradas pelos poucos terminais privados que existem.
A ideia é substituir a Lei dos Portos (Lei 8. 630 de 1993) e abrir o litoral brasileiro para que o mercado de transporte privado de cargas marítimas se desenvolva. O objetivo é que se aumente a concorrência - e, em teoria, que os novos terminais privados forcem a redução de custos para exportadores e, sobretudo, importadores. "Para os usuários de portos, a MP é boa porque a concorrência fará com que os custos que caiam e aumentará nossa competitividade", ressalta o presidente da Associação de Usuários dos Portos da Bahia (Usuport), Paulo Villa. A falta de regulamentação federal sobre as tarifas cobradas pelos terminais comprimem as margens de receita de importadores e exportadores no Brasil, segundo Villa.
Resistência - Alguns deputados e senadores se mobilizaram para atender os interesses especialmente dos terminais alocados dentro dos portos organizados, que são concedidos a grupos escolhidos 'a dedo' ou explorados pela União. “Desde setembro, há pessoas de dentro do governo tentando sabotar a MP, modificar o texto a seu favor e, por isso, o decreto com o detalhamento do plano só foi publicado em dezembro, quando a presidente bateu o martelo”, comentou uma fonte ligada às negociações.
Exemplo de nomes de prestígio na política que estão fortemente ligados ao modelo vigente do setor portuário surgiram no final de 2012. O senador José Sarney (PMDB-AC) e o ex-senador Gilberto Miranda foram citados no inquérito da Polícia Federal sobre a Operação Porto Seguro, que desvendou um esquema de venda de pareceres técnicos para favorecer empresas no porto de Santos. Sarney teve seu nome citado por Paulo Vieira , ex-diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), como possível facilitador de interesses da empresa portuária Tecondi. Já Gilberto Miranda foi grampeado pela PF e teve muitos de seus negócios no porto de Santos - alguns deles beirando a ilegalidade - descortinados pela operação. Acabou sendo denunciado por corrupção ativa por participar da compra de pareceres de órgãos públicos.
A MP 595 recebeu 646 emendas de parlamentares, sendo os mais ativos nas sugestões os deputados Márcio França (PSB-SP), influente na política de Santos, Edinho Bez (PMDB-SC), sempre envolvido em debates do setor em Santa Catarina, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) e Hermes Parcianello (PMDB-PR). Muitas dessas emendas são repetidas ou até mesmo pedem a anulação da MP - o que, segundo uma fonte ligada ao setor, demonstra um interesse em fazer com que a MP não seja votada a tempo. Caso o texto não seja votado no prazo, a MP perde validade.
Os primeiros 60 dias de prazo para a leitura e estudo do texto vencerão em 18 de março (já descontados os dias do recesso parlamentar), mas a data de expiração pode ser estendida por mais 60 dias. Se nesses 120 dias o texto não for votado, volta-se à lei anterior – dos Portos, de 1993 – e , somente os pontos decididos dentro do prazo poderão entrar como decretos desta lei antiga. “A volta da lei anterior é boa para os terminais que já estão dentro do porto organizado porque minaria essa possível concorrência e eles poderiam continuar a cobrar os preços exorbitantes que cobram”, comenta a fonte.
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Greve - Até mesmo a invasão por estivadores do navio chinês na segunda-feira, em protesto a MP 595, seria uma manobra dos terminais do porto organizado, de acordo com pessoas que acompanham de perto o assunto. Os trabalhadores foram manipulados politicamente para tentar atrasar ainda mais o processo e causar tumulto. Tais funcionários, conhecidos como "avulsos", no jargão do setor, têm prioridade nas contratações dentro do porto. Assim como a MP abre espaço para concorrência com terminais privados, ela também prevê que tais empreendimentos contratem os funcionários que bem quiserem.
O advogado especialista em direito marítimo do escritório J Haroldo & Agripino Legal Consulting, Osvaldo Agripino de Castro explicou ao site de VEJA que a MP 595 não muda as condições trabalhistas. “Sua contratação continua sendo obrigatória, os benefícios e o modelo de trabalho os mesmos, nada mudou”, disse. Ele ressalta que o medo desses estivadores é de terem de migrar para a iniciativa privada com a diminuição de demanda dos portos públicos.
Tais funcionários gozam de benefícios só comparáveis ao funcionalismo público - ainda que não precisem prestar concursos. O Órgão Gestor de Mão de Obra Portuária (OGMO) é responsável pela contratação e treinamento de todos os 'avulsos' - e o faz com extrema burocracia. “Se um terminal precisa de um trabalhador, deve pedir ao OGMO. Ele, por sua vez, indicará os trabalhadores que vão servir naquela tarefa e o preço a ser cobrado por ela”, diz Castro.
Mudanças - Os especialistas ouvidos pelo site de VEJA são unânimes em dizer que, mesmo diante das centenas de emendas propostas, o texto base da MP provavelmente manterá sua essência. "O governo pode ceder em questões pontuais, especialmente trabalhistas", citou uma fonte ligada às discussões. O próprio presidente da Empresa de Planejamento Logístico (EPL), Bernardo Figueiredo, assegurou na segunda-feira que não haverá mudanças profundas no pacote de portos, mas admitiu que talvez possam haver alguns ajustes. "Tenho lido sobre os protestos. A lei pode ter ajustes, mas os conceitos foram bem recebidos, resolvem as questões principais que a gente tem na área", avaliou na ocasião.