O alto custo da eletricidade no Brasil e incertezas sobre o abastecimento desse insumo ameaçam tornar-se mais um freio para a economia, alertam analistas consultados pela BBC Brasil.
De acordo com Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), é difícil quantificar com precisão o impacto dessa combinação sobre o PIB, "mas ele certamente será significativo, principalmente na indústria".
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"Já temos até empresas inadimplentes, que ameaçam fechar as portas por não estarem preparadas para esse aumento em seus custos de energia."
A seca e o baixo nível dos reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste fizeram o preço da energia elétrica no mercado de curto prazo - o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) - bater seu valor máximo (permitido por lei) de R$ 822 o megawatt hora (MWh) no primeiro semestre (caindo para algo em torno de R$ 700 nas últimas semanas).
Em parte isso ocorre porque, sem chuvas, é preciso acionar usinas termelétricas, cujo custo de operação é maior.
Para se ter uma ideia, em períodos de chuvas regulares, dentro da média histórica, o preço da energia nesse mercado costuma ficar abaixo dos R$ 100 o MWh. Há três anos, rondava os R$ 30.
Em meio a uma alta tão acentuada, começaram a vir à tona notícias de empresas eletrointensivas que, para amenizar as perdas causadas pela desaceleração econômica e demanda fraca, estão vendendo seu excedente de energia no mercado de curto prazo - e lucrando mais do que se estivessem produzindo.
Venda de energia
"Em geral são empresas que usam muita energia, como produtoras de alumínio, ferroligas e cloro-soda", explica Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP. "Algumas são sócias em usinas ou têm contratos antigos de compra de energia, que lhes garantem um suprimento do insumo a preços mais baixos."
Além disso, o alto custo no mercado de curto prazo também estaria afetando a negociação de contratos de médio e longo prazo, como explica Leontina Pinto, diretora da consultoria Engenho e ex-pesquisadora do Centro de Pesquisa de Energia Elétrica (Cepel).
Segundo Pinto, um cenário de "incertezas" sobre o suprimento energético estaria levando muitas empresas a revisar seus planos de investimentos.
"Para começar, com a alta do preço a curto prazo, ninguém vende a longo prazo - então não há energia para quem quer manter a produção", diz ela.
"Além disso, com a ameaça de racionamento, muitas indústrias optaram por não esperar o possível "apagão" e já decidiram reduzir a sua produção no país, substituindo-a por importações ou remanejando a produção para o exterior - o que é um duro golpe na indústria, e pode ter consequências muito severas para a economia."
Opiniões divergentes
O tema, porém, é controverso. Para Walter de Vitto, da consultoria Tendências, por exemplo, não surpreende que o alto preço da energia estimule as empresas a cortar o consumo.
"De certa forma, esse é um mecanismo de autorregulação do setor: com menos consumo, os preços tendem a cair."
Segundo De Vitto, apesar do atraso na construção de algumas usinas, estão sendo tomadas ações adequadas para a expansão do sistema elétrico e os custos altos de energia são um problema essencialmente conjuntural.
O nível dos reservatórios das usinas do Sudeste/Centro-Oeste, que concentram 70% da capacidade de armazenamento do país, hoje está em 35%, contra 62% de julho do ano passado.
"O problema é que esse mecanismo de ajuste do consumo ao preço só existe no mercado livre, que atende grandes consumidores", opina de Vitto.
"No (mercado) regulado, a distribuidora está bancando esse aumento de custo e só vai repassar as perdas para os consumidores na revisão das tarifas."
Mercado
No Brasil, os grandes consumidores compram energia elétrica das geradoras no chamado mercado livre, não regulado pelo governo e nos quais as condições dos contratos são definidas livremente.
Já as distribuidoras que abastecem residências, comércios, pequenas indústrias e serviços adquirem o insumo no mercado cativo (ou regulado), em leilões nos quais as condições de preço são determinadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Os contratos desses dois mercados são registrados na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que mede a energia efetivamente produzida e consumida por cada agente do sistema elétrico.
Quem consumiu mais do que contratou paga a diferença pelo PLD no chamado mercado de curto prazo. E quem consumiu menos, recebe pelo mesmo preço, cujo cálculo considera a disponilibidade de água para a produção de energia
"Como algumas distribuidoras não tinham contratado toda a energia utilizada, acabaram com uma conta bilionária com a alta do PLD", explica de Vitto. Em abril, o governo intermediou um empréstimo de R$ 11,2 bilhões para ajudar as distribuidoras e agora articula outro de R$ 6,5 bilhões.
"Tais custos terão de ser repassados para os consumidores, por isso em 2015 prevemos um aumento da tarifa de energia elétrica de 20% a 25%, que representaria um impacto de 0,54 a 0,68 ponto percentual na inflação", diz o especialista da Tendências.
"Peça de ficção"
O Ministério de Minas e Energia nega que seja necessário um reajuste de tal magnitude para acomodar as perdas das distribuidoras - só admite um aumento de 2,6% em 2015. Segundo Márcio Zimmermann, secretário-executivo do ministério, "é peça de ficcção falar em crise energética no Brasil" e a prova da "saúde" do sistema seria a atração de um grande volume de investimentos para sua expansão.
O ministério também não vê risco de racionamento - ou problema na venda de energia por empresas eletrointensivas.
"Se elas não usam a energia contratada podem vendê-la - essas são as regras do jogo", diz.
A Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace) concorda com esse ponto de vista e nega que haja empresas parando de produzir para vender energia.
"Isso não faria sentido do ponto de vista estratégico - mas se por um motivo ou outro sobra energia, é direito das empresas vender esse insumo", diz Camila Schoti, coordenadora de energia da Abrace.
A associação, porém, reclama dos efeitos do alto preço da eletricidade sobre a competitividade da indústria nacional.
"Países como França e Canadá têm políticas bem-sucedidas de redução do custo desse insumo para a indústria", exemplifica Schoti. "A falta de chuvas de fato é uma questão conjuntural, mas seria importante adotar estratégias de longo prazo que reduzissem os encargos para as empresas ness área."
Solução
Não está claro até que ponto um aumento do volume de chuvas representaria uma solução definitiva para a questão. Para Sauer, por exemplo, a hidrologia atípica apenas expôs problemas estruturais do atual sistema elétrico brasileiro.
Ele opina que o governo teria errado, por exemplo, ao tentar impor uma redução de tarifas, sem garantir uma queda nos custos das distribuidoras. "O sistema deveria ser planejado de modo a não depender de mais ou menos chuva", diz ele. "O país tem recursos eólicos e hidráulicos suficientes para dobrar seu consumo de energia, mas para isso são necessários investimentos e uma gestão mais racional do sistema."
Já para de Vitto, o sistema parece ser relativamente adequado às necessidades energéticas brasileiras.
"O que essa crise conjuntural está mostrando é que talvez seja interessante um colchão financeiro para amenizar a variação de preços."