Por Márcio Chaer
Homenagens post mortem, em geral, são sombrias e, não raro, artificiais e burocráticas. Dificilmente captam a complexidade da existência que se pretende reverenciar. No dia 20 de novembro passado, morreu, aos 79 anos, o advogado Márcio Thomaz Bastos. Para celebrar a carreira e a vida do grande brasileiro, este site convidou três dos muitos amigos de Márcio não só para exortar, mas para deixar registrada a dimensão humana e profissional desse símbolo da melhor face da advocacia brasileira.
Arnaldo Malheiros Filho, Sônia Ráo e Manuel Alceu Affonso Ferreira lembraram boas histórias da sua convivência com o colega criminalista. Sem esconder a emoção e o inconformismo pela perda do amigo, eles falam das características que tornaram Márcio Thomaz Bastos um modelo de profissional a ser seguido. Principalmente pela tolerância e paciência.
Analisam a transição da advocacia criminal da pessoa física para a pessoa jurídica nos últimos anos e enaltecem a capacidade do ex-ministro da Justiça e ex-presidente da OAB de trabalhar em equipe e apoiar novos talentos.
Leia a primeira parte da entrevista, com os principais trechos da conversa:
Márcio Chaer — Como era sua convivência com Márcio Thomaz Bastos?
Manuel Alceu — Eu tinha com o Márcio uma convivência muito gostosa, porque ele era um dos poucos progressistas que ouvia minhas teses udenistas conservadoras sem me dar um soco. Foi essa convivência de contrários, que é um negócio bacana de se fazer. E essa convivência, o Arnaldo lembra disso, começou em 1983, um almoço que tínhamos todas as sextas-feiras no Ca´d’Oro. Era um almoço fiscalizado pelos outros comensais do restaurante, que era, enfim, só big shots. Então, tinha o Walter Moreira Salles, o Antonio Ermírio, o maître Ático passeando por ali, que era uma figura referencial. Está na ativa até hoje. E aí era o Mário Sérgio Duarte Garcia, o Márcio, o Michel Temer, o Cid Vieira de Souza, o Bigi, enfim, vários advogados que já tinham alguma expressão. Eu estava ali de peru. O Márcio era um progressista que conversava com um conservador sem fazer cara de pouco caso, o que não é comum.
Arnaldo Malheiros — Eu acho que você colocou bem. Ele era um progressista. Não era, necessariamente, um esquerdista. Era progressista.
Manuel Alceu — Até pela prática da vida, ele não era um esquerdista, não era mesmo. Ele era um homem refinado em tudo. Era um aristocrata no comportamento. E isso me atraía muito. Toda vez que eu olhava para o Márcio eu o via em um tílburi com um cara atrás, um criado de libré trazendo um chicote. Eu acho que ele era mesmo um aristocrata.
Sônia Ráo — Ele não se alterava nunca, era uma coisa impressionante.
Arnaldo Malheiros — Quando morreu o Valdir Trancoso Peres, descobriram um vídeo gravado de uma entrevista dele na televisão e um dos entrevistadores era o Márcio. Coisa dos anos 1970. E a Sônia dizia assim: “Márcio, como você parecia cafajeste. O óculos, o cabelo, a gravata...”
Sônia Ráo — Mas era só na aparência.
Manuel Alceu — Agora, me contaram uma história que eu nunca presenciei: Márcio era antes de tudo um anticorintiano. Ele era são-paulino e o celular tocava o hino do São Paulo. Celular esse que ele não mudava, segundo uma vez me contou, porque o Paulo Lacerda disse a ele que a melhor forma de ser grampeado era trocar de celular toda hora.
Sônia Ráo — Eu diria que ele também era muito ruim de botão. Uma vez a gente estava com um gravador, normal, gravador daqueles antigos, eu e o Márcio na sala. Era uma coisa secreta, a gente não conseguiu ligar. Era só dar o Rec, não era nada complexo. Mas não conseguimos... (risos)
Márcio Chaer — O escritório que vocês estavam era na Liberdade? E o Paulo José da Costa, era do escritório?
Sônia Ráo — Era. O Paulo José da Costa era dono do imóvel e vendeu para o Márcio.
Manuel Alceu — Agora, você acha que o Márcio era munheca?
Sônia Ráo — Ele falava, e eu acho que ele tinha razão, que ele com dinheiro era justo. Não era nem perdulário nem pão duro.
Manuel Alceu — É, Sônia, eu acho que era justo, porque nós temos um amigo em comum, muito amigo dele também, o Fernando Menezes. Eles andavam às 9h da manhã e, no Pinheiros, juntos, faziam uma caminhada lá. Depois comiam uma banana, tomavam um copo de água e um café e pagavam em dias alternados. Cada um pagava um dia. E houve um dia em que o Márcio encasquetou que ele é que tinha pago no dia anterior e não o Fernando, e tiveram uma discussão monumental sobre quem pagaria.
Sônia Ráo — Cabe na definição dele de que ele era absolutamente justo em relação a dinheiro.
Arnaldo Malheiros — O Márcio também sempre foi hipocondríaco. Ele mesmo dizia que sempre ia à farmácia para perguntar as novidades e na semana seguinte passava a sentir os sintomas que aqueles remédios curavam.
Sônia Ráo — Mas ele gostava mesmo de fazer exames. Como gostava de fazer exames. Se tivesse que fazer jejum antes, beber antes, comer antes, tudo que tivesse que fazer antes de preparação ele achava o máximo. Pedia para fazer. Na verdade ele nunca estava doente, ele estava sempre muito bem. O Márcio fazendo quimioterapia, e a gente tratava como se nada estivesse acontecendo. Não é Arnaldo?
Arnaldo Malheiros — O Riad (Naim Younes, cirurgião oncologista) operou o Márcio do pulmão e dizia que ele foi salvo pela hipocondria. Como ele fazia dois check-ups completos por ano ele pegou o câncer no pulmão em um estágio embrionário, inicial. E aí o Riad tirou meio pulmão dele, mandou para o anatomopatológico voltou e falou assim: “Caso encerrado.” Aí o Márcio falou: “Mas não preciso fazer químio?” Aí me contou e falou: “Vou pedir uma segunda opinião.” Eu falei: “Márcio, segunda opinião é quando o médico fala coisa ruim. Quando o médico fala coisa boa, basta.” Aí, imagina. O Ricardo Tepedino conta que o pai dele era médico no interior e uma vez a mãe levou uma criança que tomou um tombo, fez um galo, não abriu, nem saiu sangue. E ele receitou alguma coisa para o menino e ela falou: “Mas não precisa tomar antitetânica?” Aí diz que o pai dele respondeu: “Precisa porque você perguntou.” Então, foi isso: ele foi perguntar.
Manuel Alceu — Vocês não acham que o Márcio tinha muito de irônico? Ele me convidou para fazer parte do júri do Innovare, onde eu continuo até hoje. A primeira reunião foi no Copacabana Palace. Bons tempos, o Arnaldo é meu companheiro lá. O Márcio conta para o Roberto Irineu Marinho, presidente das organizações Globo, que eu era um fã de novela, que não perdia uma novela. E eu não tenho nem ideia do que seja uma novela. Aí o Roberto Marinho perguntou: “Qual é a novela que o senhor mais gosta?” Eu não tinha a menor ideia, mas não queria dizer também para não deixar o Márcio sem graça. Aí eu falei: essa que passa mais ou menos no horário do jantar. E ele era isso, era irônico ao extremo. E ele ficava com aquela cara, olhando, e lá dentro ele gozava a desgraça alheia.
Arnaldo Malheiros — Uma vez um promotor pediu a prisão preventiva de um cliente meu e de um cliente do Márcio. O juiz, um incauto, decretou a prisão dizendo que o pedido vinha amparado em mais de duas mil páginas de documentos, portanto os acusados tinham de ser presos. Nessas mais de duas mil páginas havia extratos bancários de investigados em outros casos. O cara usou para fazer volume e enganar o juiz. Mesmo assim perdemos o Habeas Corpus aqui por 2 a 1 e fomos para o STJ. E nessa história toda os caras ficaram foragidos por três ou quatro meses. O meu cliente, dizia a família, já estava pensando seriamente em se entregar, porque ele dizia que não aguentava mais aquela vida. Mas no dia de julgar no STJ nós saímos do hotel, o Márcio, meu então sócio Ricardo Camargo Lima, uma assessora que era o braço direito do meu cliente e eu. Entramos no táxi, dá uns 10 minutos até o STJ, e aí o Márcio vira para mim e fala assim: “Arnaldo, como é que vamos fazer?” Aí eu falei: “Nem pensei.” E ele disse: “Estava pensando no seguinte, eu falo antes sobre a, b e c, aí depois você fala d, f e g.” Eu falei: “Não. Acho que está ao contrário. Eu devia falar antes sobre os outros aspectos, depois você fala desses e aí você faz o grand finale.” Nessa altura a assessora do meu cliente desaba em lágrimas. “Os caras estão indo para o Tribunal e não combinaram, não sabem o que vão dizer, nem em que ordem.” Ganhamos.
Sônia Ráo — Nessa época, durante muito tempo, o Márcio e o Arnaldo ficavam horas falando em códigos e era impressionante como dava certo. E eu falava: “Vocês não combinam antes?” Eles falavam por telefone horas e horas. Esse caso vocês falaram muito, tinha muito personagem em código. Nessa época mais ou menos o Márcio ligou na minha casa e falou: “Sônia, sabe o namorado da Julieta?” Eu falei: “Namorado da Julieta?” Bom. Era o Romeu Tuma. Obviamente que eu não acertei nunca. Eu falei: “Eu não sou o Arnaldo, eu não fico captando assim”.
Arnaldo Malheiros — A gente brincava. Teve um escândalo que tinha um grampo do Corinthians comprando o juiz. O presidente era aquele Dualibi e aparece na conversa com aquelas letras que a Globo põe. “Quer dizer que o cara quer um-zero-zero?” Aí o Márcio dizia: “Grande código, hein! Ninguém sacou nada. Um-zero-zero”.
Chaer — Mas o código que vocês tinham era improvisado ou já era pré-combinado?
Arnaldo Malheiros — O negócio é o seguinte: o Márcio teve um cliente com quem a relação se desgastou e depois ele passou para mim, eu advoguei um bom tempo. Esse cliente era cheio de manias. Uma delas era ter código pra tudo.
Sônia Ráo — Porque não tinha ninguém grampeado de verdade.
Arnaldo Malheiros — Esse cliente teve um caso que envolvia também um colega de turma meu que era procurador da República. Uma vez ele vai a uma reunião no meu escritório e chega, às 11h da manhã, de abrigo esportivo, todo molhado de suor e põe uma mochila de pano em cima da mesa. Aquela mochila se desmilingue e vê-se claramente nela um revólver. Aí ele viu que todo mundo percebeu e falou: “Eu vim correndo pela ilha da Avenida Sumaré e hoje em dia você não sabe o que vai encontrar na rua.” A partir daí, para esse cliente que também estava na reunião, ele passou a ser o “38”.
Arnaldo Malheiros — Um dia liguei para ele e falei assim: “Márcio, o Ricardo, que era meu sócio, foi para Brasília com a fulana — uma moça muito bonita que encantava o Márcio —, só os dois.” Ele falou: “Só os dois?” Ele falou ainda: “Você sabe que a especulação sobre as atividades eróticas alheias é por si só um exercício erótico, portanto, a verdade é o que menos importa. Então, diz para o Ricardo que eu quero saber todos os detalhes ainda que não sejam verdadeiros”.
Márcio Chaer — Onde você conheceu o Márcio?
Manuel Alceu — Eu conheci o Márcio no Conselho da Ordem e depois passamos alguns episódios juntos. Era gestão do Cid Vieira de Souza. E houve um episódio legal na Ordem que era a disputa entre o Sepúlveda Pertence e o Bernardo Cabral para a presidência da Ordem. E houve então um debate, ideia do Márcio, mas péssima ideia, porque nós éramos partidários do Pertence. E aí convidamos os dois para um debate aqui. Evidentemente, o Pertence deu de 35 a 0 no Cabral. Não podia ser diferente. Acontece que no final do debate, meia-noite e meia, o Pertence vai para o Hotel Othon, na Libero Badaró, praça do Patriarca, e foi lá sozinho, ainda que tomando algum drink, mas ficou sozinho. O Bernardo Cabral convidou deus e o mundo para jantar no Rodeio, que se manteve aberto. Adivinha quem ganhou a eleição? Porque levava o voto de São Paulo. Quer dizer, nós perdemos o voto justamente por ter promovido o debate.
Márcio Chaer — Ironias da política...
Manuel Alceu — Uma coisa que eu tenho muito interesse, eu tenho na cabeça que a principal herança do Márcio, herança intelectual, profissional, etc. e tal, é a responsabilidade pelo surgimento de uma nova geração de criminalistas. Então, sei lá, eu vejo vocês dois nessa geração nova, vejo o Toron, que surgiu do escritório dele, trabalhando com ele. Não é isso? Quem mais, de criminalista?
Sônia Ráo — Leônidas Scholz, Augusto Botelho, a Dora Cavalcanti, Luiz Fernando Pacheco....
Márcio Chaer — O Juca (José Luís de Oliveira Lima), a Maíra Salomi...
Arnaldo Malheiros — Joyce Roysen.
Márcio Chaer — Quando começaram a trabalhar com ele?
Sônia Ráo — Eu comecei em setembro de 90. Eu já era advogada, trabalhava com o Toron antes. No mesmo prédio da Av. Liberdade.
Arnaldo Malheiros — A Sônia e eu não somos crias do Márcio.
Sônia Ráo — Ele é uma pessoa que acho que nos tocou, profissionalmente. Estamos falando da vida de um monte de gente que foi tocada de várias formas e em vários momentos. Você vê o Celso Vilardi, um grande amigo do Márcio hoje em dia e não era antes. Mas ficou.
Arnaldo Malheiros — Aliás, fui eu que fiz essa aproximação.
Sônia Ráo — Nós dois, não é? O Juca também estava próximo do Márcio.
Márcio Chaer — Isso é pós-mensalão?
Sônia Ráo — Pós-ministério. Não é?
Arnaldo Malheiros — O Márcio gostava, e muito, do Celso. Eles ficaram muito amigos.
Márcio Chaer — Ele admirava o Pierpaolo Bottini.
Sônia Ráo — O Pier conheceu o Márcio no Ministério. E o Márcio gostava muito do Pier.
Arnaldo Malheiros — Gostava. E era pra gostar mesmo.
Sônia Ráo — O Sérgio Renault também era bem próximo do MTB
Arnaldo Malheiros — Ele também criticava, gostava de espalhar uma frase do Elio Gaspari, com quem ele almoçava regularmente e que quando um figurão contratou advogado, diz que o Elio falou no almoço: “Eu não entendi. O cara contratou o Faustão para advogar pra ele.” O Márcio adorava contar essa história.
Manuel Alceu — O Márcio me contava uma história, que não sei se é verdadeira ou não, que envolvia o Saulo Ramos e o Evandro Lins e Silva. O Evandro dizia que o Saulo, que Deus o tenha, não tinha currículo, tinha folha de antecedentes. Mas eu acho que o Márcio tinha essa condição, esse cheiro do que era bom e do que não era bom, eu acho que ele sabia fazer essa separação. Mas, às vezes, para meu espanto, ele convivia com aquilo que para mim não era bom.
Sônia Ráo — Extremamente generoso, relevava coisas que a gente poderia não relevar.
Arnaldo Malheiros — Mais do que a generosidade. Uma vez eu critiquei um colega com quem ele estava se relacionando e ele falou assim: “Olha, Arnaldo, o problema é o seguinte, o mundo não é feito só de gente boa, a gente precisa conviver com gente ruim, faz parte”.
Márcio Chaer — Mas esse era o lado político dele?
Arnaldo Malheiros — Não sei se era político. Era profissional. Não tinha nada de político. Era profissional.
Sônia Ráo — Ele não era muito político. Imagina o Márcio brigando? Eu nunca vi. Eu nunca vi o Márcio bravo. Juro. Eu já o vi indignado com algumas situações, mas brigar pessoalmente com alguém, nunca. Acho que ele, além de ser um ser político com uma diplomacia muito acentuada, era uma pessoa extremamente generosa. Tinha um feeling desgraçado. Acho que uma das maiores características dele como advogado era esse feeling infalível.
Arnaldo Malheiros — O Márcio nunca foi um estudioso de Direito Penal. Mas ele era esse cara que tinha um feeling tremendo, tinha um raciocínio estratégico absolutamente invejável e tinha paixão, tinha tesão. Era um cara que tocava no ponto.
Sônia Ráo — E tinha o que você falou, uma coisa que eu acho que ele tinha fortemente, de acolhimento ao cliente.
Manuel Alceu — Isso que o Arnaldo está falando me faz lembrar o seguinte, eu tive um sogro, já morreu, José Frederico, ele dizia que existiam juristas maravilhosos que nunca tinham lido os tratados do Manzini, mas que combinavam texto e testa, que tinham razoabilidade para combinar essas duas coisas. Eu acho que o Márcio era isso, ele combinava texto e testa. Não é?
Arnaldo Malheiros — Muito inteligente, realmente uma inteligência invulgar.
Sônia Ráo — Ele ouvia as pessoas, ouvia os clientes, ouvia os outros.
Márcio Chaer — O que eu estou imaginando é o seguinte: Márcio foi o responsável por várias das nomeações para o Supremo. Alguma vez depois de ter saído do Ministério se aproveitou dessa proximidade? Eu tenho a impressão que não. Que é um ponto a favor dele. Um ponto imenso.
Arnaldo Malheiros — Ele dizia o seguinte: “Eu procurei indicar pessoas de bem. E a pessoas de bem você não vem cobrar a indicação porque não será bem recebido. Então, se não fosse por honestidade, seria por malandragem. Eu não vou fazer isso”.
Márica Chaer — Existia um jeito Márcio Thomaz Bastos de ser. Havia advogados que estavam a milhares de anos luz do perfil ideológico do Márcio, mas tentaram recriar o itinerário do Márcio na carreira deles, no discurso. É claro que você não copia uma pessoa inteira, mas pode copiar um aspecto. Tem isso?
Arnaldo Malheiros — Sim. Tem muito. Está cheio disso. Está muito cheio. O cara viu que é um caminho que deu certo. Isso dá certo uma vez, quem viu primeiro chega lá.
Sônia Ráo — Acho difícil identificar isso na parte ideológica, porque o Márcio também se relacionava com todos os perfis ideológicos.
Arnaldo Malheiros — Não é questão de se relacionar, o que o Chaer está levantando é o seguinte: o cara tentou pegar o vácuo dele.
Sônia Ráo — Sim. Mas eu não pegaria pelo viés ideológico. Tem várias facetas disso. Primeiro, eu acho que o Márcio é um desses. Não é o único, com certeza, o Arnaldo eu acho que é também, um dos representantes da glamourização do Direito Penal. Mas tem uma transição importante para registrar. Quando comecei a trabalhar, o Arnaldo também, a gente pegava roubo, furto, estelionato, homicídio. Tinha um grande empresário de vez em quando, mas o resto era tudo normal. Advocacia normal.
Arnaldo Malheiros — O Márcio falava: “Nós éramos muito mais pobres.” E éramos mesmo. Era uma época que restaurante de luxo para gente era o Gigetto.
Sônia Ráo — A gente advogava para pessoa física naquela época. Eu, o Márcio, nós todos. Ninguém queria ser criminalista, porque ninguém queria ir em delegacia. Quando veio essa glamourização, porque eu acho que o Márcio é uma pessoa que incorpora, até por ele ser um lorde mesmo e por ele ter pegado e atuado nos grandes casos, se relacionado com celebridades, teve essa mudança que aumentou em nível e número a legião dos criminalistas.
Márcio Chaer — Ele ficou famoso como estrategista e passou a ser muito procurado por esse talento. Vocês poderiam lembrar exemplos de estratégia?
Arnaldo Malheiros — São difíceis as que se podem contar. Mas eu vou dizer uma coisa, eu estava em uma audiência na justiça federal com o juiz Sinval Antunes. Um dos réus tinha como advogado um amigo seu que tinha acabado de se reformar como coronel do Exército e nunca tinha advogado na vida. Os outros advogados eram, para meu orgulho de estar no grupo, o Paulo Sérgio Leite Fernandes e o Tales Castelo Branco. E nós estávamos, sexta-feira pré-santa, quase sete horas da noite, em um processo que tinha réus presos, era um desses escândalos de previdência social. Aí chega um grupo para falar com o juiz, o cerca e fica ali cochichando. Aí uma hora o Sinval falou assim: “Eu não vou no meio de uma audiência decretar a prisão preventiva de um homem. Nem pensem nisso. Se for o caso de decretar a prisão preventiva eu vou decretar, mas eu estou em uma audiência, respeitem o meu trabalho”. Eram procuradores da República, um vindo especialmente de Brasília, e o que eles queriam era a preventiva de um empresário num caso midiático. O fato é que na sexta-feira, no fim do expediente, não saiu a preventiva. O Márcio chamou o cliente em casa e falou assim: “Você é um risk taker, né?” A resposta: “Sim. Eu sou um banqueiro, um tomador de riscos”. O Márcio orientou: “Você tem duas opções, uma é ficar na sua e esperar o que esse juiz tem que decidir. A outra é o seguinte: eu levo você amanhã na casa do juiz. O risco é o juiz falar: ‘Espera um pouco que eu vou mandar fazer um café’, liga para a Polícia Federal, manda te prender e recolher, ou nunca mais vai te prender. Você que escolhe”. Ele levou o cliente lá e o juiz botou no despacho, indeferindo o pedido de prisão preventiva, “o réu esteve na minha casa mostrando que é uma pessoa que não está fugindo da Justiça”. Brilhante! Genial!
Manuel Alceu — Eu não sei das estratégias nos casos que ele defendia, mas eu sei de uma estratégia. Como o Arnaldo e a Sônia, eu tive o privilégio de defender umas questões civis, e uma das questões era uma ação de danos morais que ele moveu contra o Partido Progressista Brasileiro. Existe, PPB. PPB falando sobre a Coca-Cola disse que o Márcio havia sido indicado para o Ministério da Justiça pela Coca-Cola. Por quê? Em pagamento pelo fato de impedir o aprofundamento das investigações da presença de cocaína na Coca-Cola. Isso dito em um programa partidário. E eu preocupado em como entrar com a ação, que estratégia e tal. O Márcio falou: “Não tem estratégia nenhuma, você faz uma petição de duas páginas contando esse fato.” E realmente ganhamos a ação e fomos até o final.
Sônia Ráo — Ele tinha um efeito calmante sobre os clientes que eu acho que era uma coisa importantíssima dentro da relação. As pessoas saiam da sala dele calmas. Não era nada que ele dissesse, mas era uma coisa nele que acalmava. As pessoas saíam às vezes como se tivessem sido absolvidas. É um efeito que ele provocava, em mim também. Serenizava o ambiente.
Arnaldo Malheiros — Qualidade na qual ele tinha um êmulo, que tinha essa mesma virtude, o Tales Castelo Branco. Eu tive um amigo que foi cliente do Tales em um caso de júri, e ele dizia: “O Tales é um sedativo. Eu estou nervoso, vou no escritório dele e durmo”. Ele passa um tranquilidade tão grande. E o Márcio era isso também.
Sônia Ráo — E com a gente também. Para mim era importante, porque eu já ficava com dor de estômago. E o Márcio era muito saudável, por isso não dá para entender e nem acreditar que ele morreu. No júri do Chico Mendes a gente ficou hospedado no convento das freiras. A cidade repleta de jornalistas do mundo todo e ele conseguia dormir bem, se cuidar.
Manuel Alceu — Você conheceu a Marina Silva lá?
Sônia Ráo — Não. Não conheci. Era engraçado, porque tinha uns seguranças para a gente, adolescentes, que a gente nunca sabia de que lado estavam, quem eram, ninguém explicava nada, era muito louco. Eu sou totalmente perdida, não tenho senso de direção, e ele também não. E lá tinha só uma rua, vinha a imprensa toda, tinha o convento e tinha o fórum, não tinha mais para onde ir, todo dia que ele saia do plenário e virava para o lado errado e aí o pessoal da imprensa ia ajudar a acertar o rumo.
Manuel Alceu — Quantas horas durou esse júri aí?
Sônia Ráo — Dias. Alguns dias.
Márcio Chaer — E são dias que o conselho fica incomunicável?
Arnaldo Malheiros — O conselho fica incomunicável.
Manuel Alceu — Mas eu queria saber, no lado político, o Márcio era uma pessoa que agregava, sempre agregava. Até os udenistas como eu se sentiam acolhidos, atraídos por ele.
Sônia Ráo — O ACM, por exemplo, adorava o Márcio e o Márcio gostava muito dele. Ele foi cliente e amigo do Márcio. Foi na posse do Márcio no Ministério.
Manuel Alceu — Eu não sei se isso é concomitante, mas quem estava escrevendo a biografia do ACM era o Fernando Morais. Depois se desentenderam em função do genro do ACM, enfim, em razão de algumas brigas de família. Mas o Márcio foi importantíssimo, porque fez mil referências boas ao Fernando Morais dizendo que o ACM estava entregando a biografia a quem merecia biografar. Você estava muito longe ainda dessa tese das biografias autorizadas. Isso é o fim da picada. O Márcio era agregador.
Sônia Ráo — E ele era com os advogados também. Márcio era muito jovem, eu nunca o vi como se fosse meu pai, ele para mim era quase da minha idade.
Arnaldo Malheiros — O Augusto só chamava o Márcio, para os colegas, de “o velho”.
Sônia Ráo — E ele odiava, não é? Porque podia chamar o Márcio de qualquer coisa, menos falar que ele era velho. Ele tinha horror. E não era velho. No Ministério da Justiça mesmo ele chamou um pessoal muito jovem e eles se davam muito bem.
Arnaldo Malheiros — O “jardim de infância” do Márcio. Esse “jardim de infância” do Márcio era um pessoal muito jovem e muito competente.
Sônia Ráo — Márcio nunca elogiava você na sua frente, também nunca criticava, dificilmente criticava. Mas a gente tinha um combinado entre os amigos que quando ele elogiasse alguém a gente contava para esse alguém. O Arnaldo foi uma das pessoas que eu mais lembrei quando soube da morte do Márcio. Porque foi uma época que a gente estava muito próximo, trabalhando juntos nos casos. E toda hora vocês almoçavam juntos. Não é, Arnaldo? E o Márcio preocupado com o Arnaldo, porque o Arnaldo é um desregrado, eu sou desregrada, e o Márcio era todo certinho. Uma das coisas que eu acho muito impressionantes: ele era muito de bem com a vida e tinha muito prazer nas coisas. Além de ter muito prazer na advocacia, também apreciava vinhos, whisky, cinema, ele adorava o Philip Roth, o Rubem Fonseca, lia muito, o Almodóvar.
Arnaldo Malheiros — Ele era muito antenado com tendências culturais.
Márcio Chaer — Fala um pouco mais dessa linha, ele gostava do Almodóvar.
Sônia Ráo — O Philip Roth para o Márcio era um dos maiores escritores. Ele gostava muito de ler biografias de advogados americanos. Você podia falar qualquer absurdo com ele, não era uma pessoa que você ficava com cerimônia de falar. Não dava para ter uma coisa de temor reverencial com o Márcio. Por mais que ele fosse chefe, e eu considero que ele foi meu chefe durante muitos anos, além de meu parceiro na advocacia, ele te deixava muito à vontade. Ele falava: “Ouve o cliente, deixa falar o que aconteceu.” E ele fazia isso. Era um cara de esperar baixar a poeira, de não fazer movimentos bruscos, de ouvir as outras pessoas. Esse é o Márcio. É sempre uma coisa de: “Está no olho do furacão, vai passar, eu já vi isso milhões de vezes. Você está agora achando que sua vida acabou, mas sua vida não acabou. Daqui a pouco isso vai estar de outro jeito. A gente vai cuidar do processo. Deixa passar esse primeiro momento”. E com aquele efeito calmante que ele tinha. Porque é muito importante você manter a pessoa com um pouco de cabeça fria quando ela está na primeira página do jornal, achando que vai ser presa a qualquer momento.
Arnaldo Malheiros — Uma vez eu falei para ele uma frase do Giap, que foi o comandante do exército do Vietnã do Norte e derrotou os Estados Unidos da América, não é pouca coisa, e o Giap uma vez falou o seguinte: “Quando você está andando e o vento vem contra você, não adianta insistir, você vai quebrar. Mas nenhuma ventania é para sempre. Então, deita no chão, espera a ventania passar e depois você levanta e continua.” Eu falei isso para o Márcio e o Márcio achou genial. E eu falei: “Márcio, é isso que você pensa”.
Márcio Chaer — Ele não recomendava movimentos bruscos em nenhuma situação?
Sônia — Nunca. Sempre esperar passar. Dormir sobre o processo era uma expressão que ele usava muito. “Amanhã a gente retoma, vamos dormir sobre esse assunto. Amanhã a gente pensa melhor.” E você via que ele ficava maturando as coisas.
Arnaldo Malheiros — Como bom hipocondríaco ele lia tudo que era de assuntos médicos em geral e um dia leu a história de que o vinho tinto faz bem à saúde e, pior, depois leu um artigo que dizia o seguinte: a uva tinta que mais tem esse elemento químico que faria bem à saúde é a Cabernet Sauvignon plantada no Chile. A partir daí ele passou a quase só tomar Cabernet Sauvignon Chileno. E eu ia muito com ele no Parigi. E um dia eu fui acho que com o Celso Vilardi e veio lá o sommelier para mim e falou assim: “O senhor quer um Cabernet Sauvignon?” Eu falei: “Não. Quem gosta é o Márcio. Deixa eu aproveitar para beber outra coisa”.
Sônia Ráo — Ele era todo comedido. Fazia dieta sempre, mas emagrecia dois quilos a mais para ter uma reserva técnica. Todo mundo se matando, engordando e ele tinha essa reserva técnica. Uma vez nós estávamos na Bahia, em um hotel em Salvador, e tinha que almoçar muito rápido. Tinha uma mesa de doces, de brigadeiro e tal. E aí, claro, estava o Márcio, eu pedi junto com ele um peixe grelhado com palmito, sei lá, e eu só olhando a mesa de doces. Aí eu pensei que não ia dar tempo de comer sobremesa, fui lá me servir, comi e aí chegou o peixe. O Márcio falou: “Não acredito que você ainda vai comer o peixe depois da sobremesa”. Essa coisa dele de se cuidar tão bem acho que ajudava na advocacia, porque ele dormia bem, comia bem. Nada abalava isso. Ele não ia para um júri detonado, acabado. No Chico Mendes, ele dormia cedo, acordava cedo, tomava café da manhã. Todo mundo ficaria super nervoso, e ele até ficava nervoso. Citava o Valdir Troncoso Perez: “No dia que deixar de ficar nervoso antes de um júri ou sustentação oral, eu deixo de advogar”. O nervoso dele era adrenalina, do envolvimento total. Mas mesmo nesse estado ele transparecia uma calma absoluta e seguia sempre amável.
Arnaldo Malheiros — No último dia dele eu ainda lembrei com ele a história das bananas no Supremo. Ele estava como sempre em regime e a gente começou o processo do mensalão. Tinha uma companhia que fechou muito cedo, que se chamava Rural Airlines, que era o Banco Rural que providenciava o jatinho para o Márcio e para o José Carlos Dias. E aí iam os caronas. E ele já no avião abria a pasta e tirava uma fruta que era parte do regime. Aí no meio da tarde ele dizia assim: “Você, para comer fora do seu ambiente, seja casa ou escritório, você tem que comer uma fruta. A fruta ideal é a banana, porque ela é seca, você não molha a mão, você não precisa de faca. Com a mão você descasca, você come e é só jogar a casca fora e pronto. O único problema é você ser visto e acharem que você está querendo dizer alguma coisa...” Então, ele se trancava na casinha para comer uma banana e jogava a casca no cesto de lixo.
Márcio Chaer — A Monica Bergamo deu uma nota sobre isso. Porque ele comia no próprio Supremo. Não é?
Arnaldo Malheiros — No próprio Supremo. Mas ele comia no banheiro e na casinha, não era nem onde tem a pia, era na portinha trancada. Ele comia a banana trancado.
Márcio Chaer — Agora, pelo que vocês dizem, tem uma dicotomia. Ele tinha uma aparência de bon vivant, de uma pessoa muito tranquila, mas no íntimo ele era um guerreiro disciplinado, não é?
Sônia Ráo — Muito disciplinado para tudo. Mas também era um bon vivant, porque ele gostava de sair, fazer as coisas. Não era um cara só voltado para o trabalho, ele adorava correr, ele adorava ir à praia, adorava os netos, a filha, a mulher.
Márcio Chaer — Agora, não era assim como o Malheiros de ficar indo para Paris o tempo todo.
Arnaldo Malheiros — Não. Ele ia, mas o problema é que a mulher dele tem um problema grave na coluna. Para ela uma viagem que exija ficar 12 horas em um avião é inviável.
Sônia Ráo — Mas eu não acho que ele adorasse viajar para fora. Eu acho que de uns anos para cá, até por causa dos netos, eu acho que ele preferia ir para Iporanga, aonde as crianças iam. Ele foi para Disney, o que eu fiquei impressionadíssima, para levar os netos há uns dois ou três anos. A menina, Rafaela, nasceu quando ele estava indo para o Ministério e o menino, Diogo, nasceu quando ele estava voltando, quando ele estava saindo do Ministério.
Márcio Chaer — Agora, em que momento ele cruza com o Lula, Arnaldo, você lembra?
Sônia Ráo — Eu não sei, mas lembro que nós advogamos para o Lula em uma questão.
Márcio Chaer — Isso na Avenida Liberdade, em 1965, não é?
Sônia — Tudo foi na Liberdade. A gente só saiu de lá depois de um tempo em que ele estava no Ministério, no finalzinho, na verdade. Eu lembro que o Lula falou alguma coisa de privatização do governo Fernando Henrique, aí o Fernando Henrique entrou com uma queixa ou uma representação contra o Lula e nós fizemos a defesa. Não sei se foi antes disso, provavelmente foi, mas o que eu lembro mais do Márcio é o quanto ele levava a sério aquele governo paralelo do PT. Eu lembro dele saindo do escritório para ir no governo paralelo, porque ele era o ministro da Justiça do governo paralelo.
Arnaldo Malheiros — Ele talvez tenha sido um dos únicos que levou a sério o governo paralelo.
Sônia Ráo — E ele sempre gostou muito do Lula, sempre, desde que ele se aproximou. Ele achava o Lula completamente brilhante. E nunca foi filiado ao partido.
Arnaldo Malheiros — Não. Nunca foi de partido. E ele tinha uma relação ambivalente com o Lula. Admirava, claro, a inteligência invulgar, que ele, como homem inteligente, sabia reconhecer. Então, ele oscilava. Às vezes elogiava, outros dias reclamava. No meio da CPI do mensalão, o Delúbio Soares fez uma festa de aniversário no Buriti Alegre, onde o pai dele tem um sítio, e saiu na capa do Estadão uma foto que ele está com esguicho de regar jardim molhando a própria cara. E aí o Zé Carlos Dias, que é tucano, falou assim: “O Lula quando viu essa foto falou assim: ‘Filho da puta, para o melhor ele não me chama’”. O Márcio dava cambalhota de gargalhada com essa história. Ele achava a cara do Lula. Eu acho que é uma relação ambivalente. Ele dizia: “Eu nunca vi o Lula decidindo nada ouvindo uma só pessoa”. E contava: “Assunto jurídico era eu, mas o Lula não fazia segredo, falava que ia ouvir outras pessoas”.
Márcio Chaer — O processo de escolha de ministros do Lula...
Arnaldo Malheiros — Um interlocutor frequente era o Sigmaringa Seixas. Outro era o Nelson Jobim, de quem o Lula gostava também. Mas o Lula jogava aberto, não tem que fazer nada às escondidas de ninguém. “Essa opção é ótima. Você é meu ministro, levo em consideração. Mas eu quero ouvir o que os outros acham”.
Márcio Chaer — Uma vez perguntamos ao Lula: como o senhor escolhe um ministro de tribunal? Ele falou: “Eu escuto muita gente, mas muita gente.” Havia uma lógica, uma previsibilidade. Era possível saber quem tinha chances de fato. Bastava captar o senso comum em torno do Lula.
Arnaldo Malheiros — Saiu um artigo lindo da Dora Kramer sobre o Márcio na sexta-feira. Eu mandei um e-mail para ela dizendo que eu tinha ficado emocionado com o artigo de sexta-feira, que foi uma homenagem linda. Mas eu disse: “Tem duas coisas factuais que eu gostaria de contar, só para você deixar no fundo da gaveta e usar um dia se quiser. Primeira é a seguinte, o Márcio não foi o único assessor do Lula que o peitou de frente no caso Larry Rother. Ele contou com o auxilio importantíssimo de um cara chamado Ricardo Kotscho. Foram os dois. E eu sei dessa história pelos dois.