BRASÍLIA - Artistas, profissionais do setor audiovisual e representantes do governo se reuniram ontem no Supremo Tribunal Federal (STF). Motivada pela mudança do Conselho Superior de Cinema (CSC) do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, e a diminuição de representantes do setor em sua composição, a conversa acabou tratando sobretudo de censura.
Estiveram presentes na audiência atores como Caco Ciocler, Dira Paes, Caio Blat, o cantor Caetano Veloso, e cineastas como Luiz Carlos Barreto e Marina Person. Também compareceram representantes de entidades, como Daniel Caetano, da Associação Brasileira de Cineastas. E, por parte do governo, o secretário executivo do Conselho Superior de Cinema, João Vicente Santini, o secretário do audiovisual do Ministério da Cidadania, Ricardo Rihan, e a coordenadora da secretaria de audiovisual, Jéssica Paulino.
No início da sessão, a ministra do STF Cármen Lúcia fez questão de dizer que aquilo “não era um debate”.
— Li que este Supremo Tribunal Federal iria debater a censura no cinema. Errado. Censura não se debate, censura se combate, porque censura é manifestação da ausência de liberdades, e a democracia não a tolera.
A ministra é relatora de uma ação ajuizada pela Rede Sustentabilidade contra o decreto do governo que que estabelece mudanças no CSC.
‘Há boicote’, diz Caetano Veloso
A ação da Rede defende que a redução da participação de membros da sociedade civil visa “esvaziar o caráter plural e democrático do Conselho”. Para o partido, o decreto é uma ingerência política que fere a Constituição por propor “censura ideológica” ao cinema.
Entre outras responsabilidades, o Conselho elabora políticas para o cinema nacional, estimula a presença do conteúdo brasileiro no mercado e propõe atualizações da legislação relacionada à indústria cinematográfica.
A partir do decreto, o colegiado passou a ter mais representantes do governo do que do setor do cinema, com sete ministros, três representantes do setor e dois da sociedade civil. Anteriormente, a divisão era igualitária, nove membros do governo e nove da indústria e da sociedade civil.
Caetano Veloso, que lembrou a época da ditadura, suas músicas censuradas e o exílio em Londres, disse após o evento que “a ameaça à liberdade de expressão é grande”.
— É uma censura que se dá através do boicote da produção, seja a montagem de um espetáculo que eles ( do governo ) não consideram de acordo com o que pensam, seja a produção de um filme que eles acham que ofende o tipo de moral que supõem defender — observou.
O ator e diretor Caco Ciocler afirmou que os artistas “estão sentindo na pele” a censura:
— Não é à toa que estamos aqui reunidos, por mais que exista uma legislação que garanta que não há censura.
Dira Paes, atriz, compartilhou das ideias de Ciocler. Segundo ela, a palavra censura não combina com o vocabulário artístico.
— Nós queremos respeito, dignidade, eu não aceito ser atacada porque eu não ataco ninguém a não ser com argumentos, eu não xingo ninguém, eu não entro na rede social de ninguém pra dizer "você é isso, você é aquilo" porque eu tenho profunda noção da integridade que eu represento — afirmou.
O cineasta Renato Barbieri, membro do Conselho Superior de Cinema, defendeu o crescimento da indústria do audiovisual, citando um alcance internacional da cultura brasileira com os filmes “A vida invisível” e “Bacurau”. Ele ressaltou a importância da liberdade de expressão para os artistas.
— Olhar para a nossa indústria audiovisual com desconfiança ou desprezo seria um gesto antipatriótico, portanto, é mister que nós, produtores e artistas, tenhamos total liberdade de expressão, um valor tão bem defendido pela Carta Magna de 88 — disse.
O secretário executivo do Conselho Superior de Cinema, José Vicente Santini, que também é secretário executivo da Casa Civil, afirmou que a mudança da estrutura mostra que o governo coloca o cinema como prioridade:
— Podem ter certeza que os conselhos mais importantes da República são presididos ou secretariados pela Casa Civil. Se esse conselho voltou para a Casa Civil, onde foi criado, é porque há uma prioridade.
'Diretrizes do governo'
Se garante que não há cerceamento de liberdade de expressão nos mecanismos de incentivo ao cinema, o secretário do audiovisual, Ricardo Rihan, acredita ser natural que as linhas de fomento sigam as “diretrizes do governo”:
— No fomento direto, no caso do Fundo Setorial do Audiovisual, a sugestão das linhas costuma seguir as diretrizes do governo. Mas mesmo assim são aprovadas por um colegiado que tem representação do governo e da sociedade civil.
A cineasta Marina Person aproveitou para lembrar a suspensão do edital que previa financiamento para séries LGBT, entre outros temas, para a TV pública . Ela contou que tinha um projeto de série concorrendo nesta linha, e iria tratar da diversidade dos novos nomes da MPB. A Justiça acabou determinando que o edital fosse retomado.
Alvo do governo: Entenda a crise do edital com séries LGBT que levou à demissão de secretário
— O cancelamento desse edital é um silenciamento de projetos que dão voz para essa parcela da sociedade brasileira — disse a cineasta.
Em sua fala, o ator Caio Blat aproveitou para ler um trecho de "Grande Sertão: Veredas" (ele é o protagonista da peça de Bia Lessa inspirada no livro de Guimarães Rosa), em que o cangaceiro Riobaldo revela sua paixão por um companheiro, Diadorim, sem saber que ele é uma mulher que se veste de homem.
— Guimarães Rosa talvez não poderia desenvolver a maior obra-prima da literatura brasileira se ele dependesse desse edital.