Os aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro envolvidos no suposto esquema de venda ilegal, no exterior, de presentes oficiais recebidos entre 2019 e 2022 tinham "plena ciência" da ilegalidade das transações, afirma a Polícia Federal.
A constatação aparece na representação da PF enviada ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que autorizou as buscas desta sexta-feira (11). A TV Globo e o g1 tiveram acesso ao documento.
Segundo os investigadores, os militares que assessoravam Bolsonaro conheciam as restrições previstas na legislação para o comércio desses presentes – mas decidiram ignorar essas regras ao colocar os itens para venda direta e leilão.
A conclusão da PF deriva de mensagens de celular (veja abaixo) trocadas entre três então funcionários do governo federal:
Marcelo da Silva Vieira, ex-chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República (setor responsável por gerir o acervo de presentes);
Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; e
Marcelo Costa Câmara, assessor especial de Bolsonaro durante o mandato e que seguiu na equipe do ex-presidente este ano.
Segundo a PF, essas mensagens "evidenciam que, além da existência de um esquema de peculato (desvio de recursos públicos)", Marcelo Câmara e Mauro Cid tinham "plena ciência das restrições legais da venda dos bens no exterior".
Diálogos
Em 5 de março de 2023, Vieira encaminhou a Cid trecho da lei que regulamenta a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. E alertou:
“Como já disse, o que for [acervo] privado ele pode usar. É dele, Todavia são itens privados de interesse público, daí tem que observar o artigo 3 do capítulo 1 que põe restrições (venda ou doação)".
Segundo a norma, os acervos documentais privados dos presidentes da República integram o patrimônio cultural brasileiro e são declarados de interesse público, sujeitos às seguintes restrições:
em caso de venda, a União terá direito de preferência;
não poderão ser alienados [vendidos] para o exterior sem manifestação expressa da União.
Um mês antes, Cid e Câmara já haviam sido alertados pelo servidor que a negociação dos itens do acervo privado da presidência exigiam comunicação prévia.
Na oportunidade, eles tratavam da tentativa de vender um kit de joias da Chopard, contendo uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe ("masbaha") e um relógio.
“Eu falei com ele sobre isso, Cid. Aí, ele me falou que tem esse entendimento sim. Mas que o pessoal questiona porque ele pode dar, pode fazer o que ele quiser. Mas tem que lançar na comissão memória, entendeu? (...)”, escreveu Marcelo Câmara para Mauro Cid.
Cid lamenta restrição: 'Uma pena'
Em outra troca de mensagens, Câmara diz que, por se tratar de itens negociados no exterior, teria que informar sobre a transação.
Após ter ciência das restrições, Mauro Cid lamenta a proibição de venda em razão do alto valor previsto para a venda.
"Só dá pena pq estamos falando de 120 mil dólares / Hahaaahaahah", escreveu, em referência ao Kit da Chopard.
Marcelo Câmara responde:
"O problema é depois justificar e para onde foi. De eu informar para a comissão da verdade. Rapidamente vai vazar".
Mesmo lamentando, na prática, os assessores de Bolsonaro destinaram efetivamente o kit da Chopard à venda. O conjunto chegou a ser anunciado por uma casa de leilões com sede em Nova York, mas não foi arrematado.
Semanas depois, o Tribunal de Contas da União (TCU) ordenou que o kit fosse devolvido ao governo meses depois. Cid e Câmara empreenderam uma "operação de resgate", nos termos da PF, e conseguiram recuperar os itens.
A informação de que o kit havia sido recuperado tranquilizou Mauro Cid. "Ufa", escreveu, quando o pacote é entregue na casa do pai de Mauro Barbosa Cid, o general Mauro Lourena Cid, na Flórida (EUA).